Em fase particularmente fecunda de produção literária, abrangendo a poesia, a prosa evocativa e o ensaio, dir-se-á que Maria do Sameiro Barroso está apostada em esvaziar as gavetas, em "libertar-se" de experiências consumadas para exercitar voos a outras e sempre apaixonantes viagens pelo interior mágico das palavras e pelos labirintos desafiadores, mesmo se insondáveis, do espírito. Palavra (Verbo) / Espírito (Ser) - eis o binómio que encerra a essência de toda a superior expressão; que transforma um autor, segundo a filosofia socrático-platónica, numa espécie de maieuta e demiurgo, quer auscultando as profundidades da sua própria consciência, quer devassando e interpretando o mundo circundante, reconhecendo-lhe ou não bondade, harmonia e sentido.
Em 1963 escreveu o excelente poeta Daniel Filipe a obra Pátria, Lugar de Exílio. Agora Maria do Sameiro Barroso apresenta-nos outra de título similar, embora de natureza e estrutura diferentes: O Corpo, Lugar de Exílio. Enquanto o poeta neorrealista centrava a inspiração em algo exterior, a pátria, como topos do sentimento negativo, a operosa poeta bracarense da nossa contemporaneidade deslocaliza aquele topos para a sua própria territorialidade, o corpo. Será ele, pois, o entrave e a prisão de um espírito que aspira a amplas liberdades e desmedidos voos; um espírito simultaneamente ausente de si próprio (exilado) e prisioneiro da humana condição que o confina aos limites da matéria, o corpo.
É, a meu ver, dentro desta dialética, sustentando uma ânsia de evasão, que devemos compreender a evidente mudança de agulha de Maria do Sameiro Barroso na trilha da sua obra poética: passar de uma estrutura densa e de verso longo, por vezes de elaboração complexa se não hermética, para um lirismo solar e alado, intentando alturas de vivência e expressão que só ao poeta são acessíveis e só "nas suas horas mais puras", como nos revela Coleridge. A autora conviveu muito e muito de perto com um dos mais límpidos e puros mestres da lírica portuguesa do século XX - António Ramos Rosa. E tal convivência com o autor de O Grito Claro (1958) e com a sua longa e meridiana obra tinha que dar os seus frutos. E deu; temos hoje perante nós, neste novo livro da Autora, um exercício poético em que a leveza, a fluidez e a luminosidade constituem os mais espontâneos e contagiantes estímulos de leitura e proveito.
Não se pense, todavia, que esta poesia revela um epigonismo subserviente e cego. Se amiúde nos reporta ao grande poeta algarvio, tanto na seleção de vocabulário como na arte combinatória do mesmo, não é menos verdade e evidente que deixa, verso a verso, poema a poema, inquestionáveis marcas de originalidade, rasgados lampejos de fulgurações inéditas. Se todos somos um pouco a soma das nossas referências electivas, um verdadeiro espírito criativo, interiorizando-as, acaba por superá-las, na busca porfiada do seu registo próprio, da sua genuína e inconfundível marca de autor.
São trinta e quatro poemas (melhor: trinta e quatro momentos de um só poema), cuja estrutura métrica varia entre dez e quinze curtos versos, tomando o corpo como objeto de expressão lírica. Já em 2003 o falecido Joaquim Montezuma de Carvalho, seguindo o conceito borgeano, considerava e classificava desta forma a poesia então conhecida de Maria do Sameiro Barroso: "os poemas de seu corpo são um só corpo de poema, aquele Poema sempre reescrito e reelaborado". Este livro de agora é como que o corolário de um persistente esforço de aperfeiçoamento, assim se justificando, dez anos depois, a chamada da observação judiciosa de Montezuma de Carvalho ao limiar de suas páginas. Permite-nos avaliar um percurso de escrita vigiada, permanentemente apostada em polir arestas, extirpar aquelas mais dissimuladas impurezas que se entranham num discurso literário, sobretudo no discurso poético. No momento inaugural, como que a súmula de todo o poema, o leitor atento e sensível como que experimenta o rumorejar de uma melodia inefável e o marulhar de águas matriciais em fuga ao tempo e à gravidade; ao corpo, lugar de exílio. Vale a pena citá-lo na íntegra:
"Partir, partir sempre, partir para sempre.
Nenhum lugar é estável,
quando se procura o insólito rumor
das coisas.
A morte é uma laranja que apodrece
numa língua de versos.
Um rio é tudo o que tenho,
no quotidiano cego,
onde se expande o coração apertado,
o tambor da treva, o balido do mar,
o sol longínquo."
(poema 1)
Todo ele denuncia um encarceramento do ser nas grades intransponíveis da contingência e da finitude. A Autora como que aspira por uma segunda natureza que vença a relatividade física em prol da metafísica do espírito. Uma espécie de ascese em que o corpo se posiciona como obstáculo e objetor, impondo a sua gravidade como entrave ao sonho desmedido e inexequível de um Ícaro em direção ao sol longínquo. A par e passo esta como que obsessão pela luminosidade solar, estelar ou lunar, ofusca e inunda o leitor, impregna página a página a discursividade poética de Maria do Sameiro Barroso. Logo, logo (poema 3) podemos ler:
(...) "a vida permanece ilógica,
as quimeras ditam-te a sua febre astral,
a lua extrema arrasa os seus túmidos versos,
e as estrelas brilham na volúpia recôndita
da sua sombra fugidia.
Os manuscritos do sol brilham
para além da névoa, os relógios calaram-se.
Talvez as núvens escrevam
a tua biografia."
(...)
Veremos, em breves flaches, como a obsessão, (genericamente classificada pelos entendidos como perturbação da consciência), consiste, em clima de transporte criativo, numa benigna fixação em algo de super-real, resistente a padrões e tabelas de aferição convencional. Estamos na esfera do Ideal e do Indizível, onde se inscreve a grande poesia, como as demais grandes obras produzidas pelos grandes génios da humanidade. Octavio Paz, na sua obra "Corrente Alterna" (1967) exprime magistralmente essa desafiadora indefinição sinestésica e essa fecunda polissemia: "Compreender um poema quer dizer, em primeiro lugar, ouvi-lo. Ler um poema é ouvi-lo com os olhos; ouvi-lo é vê-lo com os ouvidos. O Poema deve provocar o leitor; obrigá-lo a ouvir - a ouvir-se."
Com formação médica, direi que Maria do Sameiro Barroso, neste poema de apolíneo recorte, intenta uma espécie de anatomia da luz, "o cerne da luz, / afastando, uma a uma, / a linguagem gasta." (poema 19). Até à exaustão do dizer, até onde as palavras dão sumo e o destilam pelos mais subtis e hábeis processos de decantação. Reparemos neste pequeno apanhado de palavras ou locuções ou versos que sucessivamente anotei e, na mais conseguida formulação lírica, inundam de claridade estas páginas: "Parto, com as águas, para recolher a última luz / que sobre ti inventei" (poema 4); "Parto com a última luz que floresce / na aurora." (poema 9); "(...) Depois, perdemo-nos na amêndoa / clara da longínqua luz." (poema 11); "Sei que amas o sol. (...) A luz é insegura, a lua é espessa, a matéria é salgada." (poema 12); "Falta ainda uma rosa de luz, / quer seja concha, mimosa ou papoila, / boca, beijo ou coral." (poema 14); "Nos rios de sombra / ateio a minha luz." (poema 16); "Banho-me em unguentos de luz, / em névoas salgadas, / cavalgo no dorso do mar." (poema 18); "Em versos de absinto, / verto a tua luz." (poema 21); "Constrói o teu espelho, recolhe a luz / do deserto." (poema 24); "Os jardineiros do Sol / plantaram pedúnculos verdes // nos açudes da luz." (poema 26); "(...) o silêncio do avesso a devorar a luz." (poema 27).
Longa a deriva; explícito o propósito de demonstrar o quanto a luz, a sua emanação, as suas gradações, a sua incidência sobre o discurso poético contagiaram e encandearam irresistivelmente a poeta bracarense. Como inseto em redor da lâmpada, também ela se deixou enlear pelo seu fascínio, a sua energia criadora, o halo de beleza que prodigaliza sobre toda a natureza envolvente.
Claro que nos deparamos aqui com uma linguagem poética; uma linguagem de desvio, invenção e surpresa, estranha a quem procura uma escrita de semântica básica e pragmática. A poesia é também um exercício de subversão e é mediante esse exercício que alarga, aprofunda e depura o dinamismo intrínseco do idioma em que se exprime. É preciso haver uma certa intimidade com os processos de fazer poesia para compreender a sua gramática simbólica, a sua valorização de figuras retóricas e de estilo; enfim, de todos os instrumentos que lhe são próprios e que só os autênticos poetas sabem potenciar em versos que, porque sublimes, estão a coberto da erosão do tempo e da volatilização dos gostos. Porque neles habitam "ascenção, memória e leveza." (poema 30); porque eles afastam e obliteram "a linguagem gasta / na tinta quotidiana das palavras." (poema 19)
Paul Valéry, o grande poeta francês do século XX, no auge da excelência e da consagração, confessava-se deprimido e insatisfeito, dizendo-se "enfastiado de ter razão, de fazer o que tem sucesso, da eficiência dos procedimentos", para reconhecer a necessidade de "tentar outra coisa". Com efeito, o êxito como meta só aos medíocres interessa; os verdadeiros artistas da palavra, por cada etapa vencida, outra e mais exigente se lhes impõe; uma "outra coisa", sem muitas vezes terem verdadeira noção de quê, os convoca a ir mais além, a superarem os limites do Corpo Lugar de Exílio.
Suplemento Cultural do Diário do Minho, Braga, 2014
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